terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Arraia do místico

A revolução realiza o infinito da inconstância
Na matéria etérea onde a vontade cristaliza
Crisálida, vaga, deserto gélido da nostalgia
Árida existência da evolução ínfima, íntima
Mutável necessidade, só o que nos resta é viver
Extrair a experiência no âmago amargo do desalento
Evoluir os aspectos holísticos deste desatinado destino
Amplidão e infinito, enigmática arraia do místico.

República submarina

Lástimas...
Triste fim, arlequim tropical
Palhaço anônimo, cidadão.
Eleitor de uma já naufragada nau
Segues nu e desorientado à beira do abismo,
Mas vais tranqüilo...
Não morrerás sozinho, não.
Terás companheiros na empreitada,
Juntos na enormidade vácua,
Findos os estigmas, os conflitos,
Toda nau náufraga gera vida
E lamenta os portos como amantes...
Uns ainda vêm, outros ficam,
Atlântica, federativa, república submarina.

A turba

Galga a pedra lisa o eremita
Esmera o dedo que escorrega
Sua, sangra, serpenteia a superfície
Luta com a rocha serena e ensolarada
Abaixo, a multidão de sombras marcha
Arrasta esperança pela realidade descampada
O vento se esquiva e o solo sertanejo estala
A vaquejada alquebrada da Baixa da Vaca
Atrai pequeninas e magras formas enfermiças
Geme a turba dos esquálidos e desvalidos
Corajosos, determinados, nômades famintos
Quadros desesperados do desterro
Queimam ante o sorriso da sociedade apolínea
Hipócrita, corrupta, bela e coronelista...
Adora as cifras e orgias da fausta burguesia
Desfruta da tranqüila vida tropicalista
Lambuza-se na podridão política
Ignora a dor de estômagos onde o vazio grita
Como há fome no país onde tudo termina em pizza?

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Azul sereno

Uiva ardente o vento noturno
Delirante bafejo do desejo
Sentimentos e passos no escuro
Bailarinas memórias ao peito.
Reluz nascente o mar dos caminhos
Indócil, a vontade é amazona
Sopra mel o vítreo azul sereno
Remete afagos ao relento matreiro.
O Sol desvirgina a cidade
Sedenta e despudoradamente bela
Abraço áspero do moderno delírio concreto
Sorve doce o desastrado épico ébrio.
Farfalha o escorrer das delícias
As folhas secas namoram e valsam
Noite de sonhar, dia de ressurgir!
Parte as âncoras o rugir da temperança,
O sino dobra norte ao destino amadurecido
A brisa entoa inesquecível idílio, de sereia o brilho
Entre monte e mar, acorda colorido Rio
Deita sonhos ardentes a fugitiva madrugada...

sexta-feira, 31 de julho de 2009

Clara

Cartas marcadas no jogo da vida
Fotografias voam no jardim
O parquinho vazio e saudoso
Brinca sozinho em dias úmidos
O terno engole o triste garoto
A chuva dilui o império mirim
Bichos molhados resfolegam
Olho da beleza pequenina, que grita:
A girafa! Quero ver a girafa!
Mesmo ressequida, há vida
Aparece crisálida e criança
Inocente abraço do porvir
Clara memória inestimável
A esperança renasce no teu sorrir
Não cresça pequeno jasmim!

sábado, 27 de junho de 2009

Maratona

A faminta guerra persa
Engoliria os filhos gregos
Daria às valentes mulheres
A morte de forma perversa
Se a vitória não viesse cedo.
A dor consumira a vida infante
Em um mundo sem conforto
Resta percorrer o caminho infame
Ou mergulhar rumo ao confronto
As mulheres gregas não hesitariam
Em tragar seus filhos da luz de Apolo.
Antes o etéreo nos braços maternos
Que o destino atroz da lâmina persa
Ao término da violenta e histórica contenda
Filípides, melhor atleta e guerreiro dos gregos
Correu para salvar a pátria, suas mulheres e filhos
À chegada, da vida seu termo, apenas disse: vencemos!

terça-feira, 28 de abril de 2009

Lobo

Seja, à superfície, ágil como o felino arisco
Traga a pax romana como édito em seu íntimo
A mais feroz legião se levanta ao menor grito
Mas o verdadeiro poder é manter-se pacífico
Na guerra, ser o mais tranqüilo sábio do budismo
Coragem é resistir ao desnecessário confronto
Procurado por quem já perdeu antes de lutar
A vida é um boulevard de tristes desencontros
E alguns, mais que outros, têm mais a amargar
Saiba viver em meio ao olho da tormenta
Alimenta o lobo que à felicidade fareja
Pois o lobo do ódio não precisa de ninguém
Nas sombrias estepes onde a dor viceja
Ele encontra mais alimento do que lhe convém

Tormenta

Gira o norte do naufrágio
Os marujos jogam dados
Imprevisível e excitante
Tormenta, a melhor amante,
Atua nua em um porto de Cádiz
O mar semeia a tempestade
O leme, solitário, rumo ao desastre
O capitão dá o alarde
O vento traz a fúria de Marte
Contramestre e marinheiros ao convés
Ruge e sopra a mão fria que traz o revés
Rasga a parede d’água como violenta adaga
O futuro é sopro de areia em águas amargas
Esperança, amores e homens ao mar!
A vida, no fundo, é morrer ou lutar
Oceano, espelho do céu em fúria
Contempla a força de quem insiste
E à tua implacável ira se opõe.
O braço forte da coragem em riste
Ao beijo frio do eterno se interpõe
O capitão não abandona o navio a afundar
As Valkírias levam os caídos em batalha
A coragem é a mais valorosa mortalha
E as sereias amam os valentes lobos do mar

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Andrajo de andarilho

Há mais areia que destino
Nas perigosas curvas do trilho
Na paixão-rodopio em forma de vestido
O salto abraça o escarpado abismo
Há mais areia que destino
No coração andrajo do andarilho
Dom Quixote das estradas de domingo
Poeta de estórias amargas e sem amigos
Há mais areia que destino
No olho solitário a fitar a luz do frio
Na revolução dilacerante do íntimo
Alma errante nas raias do místico
Há mais areia que destino
No mar colérico e movediço
Verga solitário o valente navio
Imerge xucro rumo ao último abrigo
Há mais areia que destino...

domingo, 29 de março de 2009

Esfinge

A cada um cabe sua esfinge e próprio abismo
Trama árida da qual a vida tece tênues fios
Enigmas sombrios; calabouços do íntimo
O amor tem na esperança o último abrigo
Mentiras honestas; traição de olhos amigos
Quantas punhaladas suporta o coração iludido?
Seca e cruel, a desilusão é musa de múltiplos disfarces
A língua de Vênus é doce enigma aos ouvidos de Marte
Saudade é para quem fica; a curiosidade é de quem parte...
O fim da existência é entretenimento no diário dos desastres
Solidão, ira e ansiedade; sentimentos que nos invadem
Quantas estocadas sangram o malogrado peito que debate?
Esfinge dos tempos, enigma dos novos dias
A humanidade caminha só e autodestrutiva
O Universo é sem luz, as poesias sem rima
A vida não dança mais aos acordes da lira
À chegada do luar, o Sol, discreto, se retira.
A Esfinge revela o conteúdo de seu enigma:
Como o mundo sobreviverá ao trágico fim da poesia?

sábado, 28 de março de 2009

Estrada

Pé no chão e olhos na estrada,
O futuro a conquistar e o resto é nada!
Deixo o que for pelo caminho,
A roupa do corpo e a vontade de seguir sozinho
Não importa terreno, barreira ou muralha,
Vou a pé, no peito e na raça!
Pode ser sem um puto, duro, às migalhas...
Espero que tudo vá para os raios que os partam!
Eu meto o pé e faço a minha, só na estrada.
O mundo é maior que o quintal burguês da bela casa,
E o que tiver de ser meu, será ou ficarei sem nada,
A liberdade não é pouco e já me basta.

sexta-feira, 20 de março de 2009

Ao roedor amigo

O prazer com que se apraz no hábito
E a fraca compleição de seu caráter,
Desvirtuado à retidão de molde imutável,
Tende às sombras,
Mascara as oleosas tragédias de sua face,
Destarte, ilude-se, acredita-se, tenta regenerar-se...
Porém és fadado aos maus atos,
À perfídia és obstinado,
Qual escorpião que fere o que transporta,
E segue, Sísifo a enganar a malograda porta;
Levado pelos pútridos estímulos íntimos que venera,
Prazeres secretos que se oblitera,
Gozo espásmico da perversão.

Morde a mão que o alimenta,
Ilude o coração de quem te ama
Delata a confidência estranha,
Mascara, fere, mata,
Semeia tempestade em nuvens claras
Disfarçado, friamente apunhala...
Porém tem em si o fim para seus atos,
Pois dos aspectos mais natos,
Trair é seu hábito,
E quem tem a traição por norte,
Certamente trará isto à própria sorte.

O grito

Na janela, através da noite
O gralhar sombrio da realidade
Um homem, sozinho, grita sobre uma ponte fria
As palavras tiram fotos do que vêem, mas não dizem tudo
Acordados e atordoados, sonham com realidade
E não realizam sonhos

A caverna de Platão ainda abriga alguns eremitas
Sentados, assistem películas sobre o mundo
As matizes, misturadas, constroem um grande caleidoscópio
Através do qual são dissolvidos os dogmas
Símbolos marcam a existência,
Alguns ainda vêm com foto

O diabo, garboso com sua capa vermelha,
Rouba a mulher do poeta,
Mas este não o crê
Vê o mundo qual bacante e descontrói a verdade
Evade-se para a ilha de Thomas Moore
Porém atraca no continente da segunda-feira.

Um homem fez de sua privada uma fonte
Enquanto outro pintava girassóis
Estátuas discutem filosofia
A guerra, pulsante e sangrenta, estática
E a arte reflete a realidade
Com os olhos cheios de sonhos.

A borda da matina

Dois goles de fel
No boteco esperança
Ventura, boêmio menestrel
Flerta e a flor bela, o espanca

Restos de amor no cardápio
Fígado, coração e múltiplos espasmos
Doses esparsas de paixão e sarcasmo
Mergulho lancinante e voluntário

A sombra notívaga, violada e vadia
Beija o vazio enquanto o sol a desvirgina
As máscaras ébrias caem sob a luz do dia

São agruras do Poeta e seu Cão à borda da matina
Após o enigma da noite violenta e sem Lua
Amor deixa o recinto e esquece Solidão sua noiva surda

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Nerêiade

Morena princesa marinha
Tens o hábito de brincar com suas vítimas,
Amarga e adocica,
Afasta-se e aproxima
Tenha cuidado em teus hábitos
Os amores inspiram cuidados
É preciso regá-los
O que não alimentas morre,
Inanição, dor ou pura falta de sorte
Bem sei que não fazes por mal
És apenas inconseqüente,
Em mais um carnaval...

O gosto do gatilho

Apostei as últimas cartas
Abraçado à derrocada
Sorvi ao mal, qual amigo engarrafado...
Ascendi ao abandono do cigarro

A musa com o batom borrado
Qual palhaço triste e cansado
Derrama-se à neve de um sofá ácido
A música rasga a sanidade da manhã

A promessa absolve a suja mente sã
Toda agonia explode em irracional grito
A paixão renega e a pólvora prova o gatilho

O amor não passa do mais fatídico mito
Objetivo e idílio sangrento e fictício
Abismo, mar revolto, dor que insistimos...

Saturno

Céu azul e límpido,
Verde água,
Abrange o ímpeto
Cessa mágoa,
Abraça, ama e mata.
Qual amor que sufoca,
Carinho que maltrata,
Beijo ácido, paixão fátua,
Destila o que provém de tua fala,
Desengana e afasta!
Teu sorriso esconde o vil,
A bela figura onde se esconde,
E o brilho astuto do ardil,
Tens a tendência: o que amas, mata.
Eu, teu insone, sigo o infeliz caminho dos narradores,
Desagravo inábil,
Não te encontrarei no limbo,
Ainda não sei a parte que me cabe no concretismo,
Perdi meus pais e pares na disparidade
Inconsistências, Vênus e Marte...
Soturno Saturno,
Onde se encontram as esferas de quem parte?

Rosa dos Ventos

Impacto luzidio,
Relicário fugitivo,
Abandone o que te consome
Seja sincera
Devassa ou beata,
Não importa,
Largue a máscara
Venha farta

Táctil, o pudor se faz frágil,
A lua múltipla esconde-se cigana.
O vento, cardeal, corre à rosa,
Enquanto oceanos dançam, anacrônicos...
A atmosfera se abre luminosa e vasta
O peito explode o vazio.
Olhos, como sempre, pulsam,
Mas o coração não quer mais ver...

Havia esquecido o quanto doía
Vai-se das nuvens ao chão
Rápido impacto, tal raio,
Fulminante e simples: não

Fresta de sol em dia plúmbeo,
O sonho chorou tua partida,
Só, na caixa de Pandora.
O destino se espalha em estradas tortas...
Escolha qual direção seguir,
Antes que a vida siga sem ti.

Frio deserto,
Adora o que lhe é incerto
A paixão, pára-quedista, segue em queda livre,
Desafia o mais valente dos tementes,
O desejo multiplica cores dançarinas,
A beleza, solitária deusa, tem nome de menina,
Idílica, é musa do ar e das ilhas,
Teu nome, se o quisesse, gritaria...
Mas é de Ulisses a Ítaca.

Epopéia poética e náufraga,
Descortina à nau a bruma
Chacoalha a espuma
Concretiza o abstrato em veia funda
Rompe o véu que te afaga...
Além das nuvens fartas,
O céu de brigadeiro nos aguarda

João Bastos

O poeta

Abandonaram o poeta
Náufrago, enfermo e à própria sorte,
À sua última e lancinante amante
Versejou da pátria o horizonte
E em sua trêmula tumba náutica,
Afaga, ufano, enormes vagas literárias,
Guarda no etéreo das águas plácidas
Na profundeza da alma a última morada
Sem palmeiras, sem sabiá, sem nada.

João Bastos 04-11-08